A música — dizia Aristóteles — imita diretamente (representa) as paixões ou os estados da alma — brandura, ira, coragem, temperança, bem como os seus opostos e outras qualidades; daí que, quando ouvimos um trecho musical que imita uma determinada paixão, fiquemos imbuídos dessa mesma paixão; e, se durante um lapso de tempo suficientemente longo ouvirmos o tipo de música que desperta paixões ignóbeis, todo o nosso caráter tomará uma forma ignóbil. Em resumo, se ouvirmos música inadequada, tornar-nos-emos pessoas más; em contrapartida, se ouvirmos a música adequada, tenderemos a tornar-nos pessoas boas. (A History of Western Music. Donald J. Grout e Claude V. Palisca. 1988).
Aristóteles foi certeiro e muito perspicaz em seu raciocínio. A música está presente intrinsecamente em nós e afeta de maneira substancial a nossa forma de existência. Quando ouvimos a boa música, somos transportados a um estado de êxtase no qual dificilmente conseguimos equalizar nossas emoções. Quando ouvimos a música ruim… Ora, p…. Por que raios deveríamos ouvir música ruim?
Não temos o controle prévio sobre nossas sensações e expressões, pois tais manifestações ocorrem de maneira completamente autônoma. Sendo assim, deveríamos ao menos saber escolher a música adequada para se ouvir. Já que não temos controle sobre nossos instintos, que tenhamos ao menos autonomia sobre a escolha dos nossos estímulos.
Na história da humanidade e principalmente na história do pensamento, por inúmeras vezes os grandes filósofos transcorreram em suas obras, direta ou indiretamente, pela música. É-nos possível pensar na música de diversas formas, valendo-se de nossas divagações ou de algumas definições filosóficas fundamentais. Poder-se-íamos falar a respeito da música considerando-a como a revelação de uma realidade privilegiada e divina; em exagero: tratando-a como a “linguagem dos Deuses”, mais ou menos como na definição romântica: “os acordes musicais são palavras de uma divindade oculta”. Poder-se-íamos também considerá-la a partir de uma realidade puramente científica, tratando-a como um conjunto de técnicas expressivas que — através do raciocínio matemático e lógico — concernem à sintaxe dos sons, etc. e blá-blá-blá.
Esperemos um instante! Ainda é muito cedo.
Como pensar na música em toda sua amplitude sem antes aprendermos a escutá-la?
Pois bem… Voltaremos a este assunto quando preparados. Por hora, vamos ao que nos interessa.
A conquista de critérios necessários para transformar a mera audição em um processo de escuta inteligente requer paciência, conhecimento e prática. Algumas pessoas nascem com ouvidos apurados, e são hábeis ao identificar notas e captar sonoridades que alguém com um ouvido menos atento sequer consegue perceber. Uma pessoa com “ouvido normal” (destreinado) — o que chamamos de ouvido relativo — necessita de algum conhecimento teórico e de uma referência prévia, para — através da comparação — identificar uma nota musical. Já uma pessoa com um “bom ouvido musical” — o que chamamos de ouvido absoluto — consegue reconhecer as notas de uma melodia ou de uma harmonia com extrema facilidade, entretanto isso não quer dizer que esta pessoa tenha maior sensibilidade musical do que aquele que possui ouvido relativo.
Pessoas portadoras de ouvido absoluto têm, a priori, aptidões musicais substanciais, e, ao se sentar diante de um piano, por exemplo, conseguem reproduzir melodias e harmonias com perfeição, como se as tivessem estudado por anos. No entanto, isso não significa que essas pessoas tenham a compreensão exata do que estão tocando.
Aqueles que possuem ouvido relativo não terão a mesma facilidade para reproduzir melodias e harmonias sem um estudo prévio, mas com treino auditivo — por meio de exercícios específicos e conhecimento teórico — tornam-se empiricamente capazes de criar belíssimas melodias e até harmonias complexas.
Sempre que alguém me vem com aquele papo furado: “Eu não consigo aprender porque não nasci com ‘dom’ musical…”, digo: —Qual é o problema? Se não tem dom musical (o que muitos chamam por dom, prefiro chamar de aptidão), proponho trabalharmos a sua inteligência musical!
Para conquistar uma audição inteligente e criteriosa, não é necessário ter ouvido absoluto, ou qualquer tipo de dom especial, mas é imprescindível que se tenha algum conhecimento musical, para ser possível — através do aperfeiçoamento do ouvido relativo — estruturar o processo de audição, melhorando a capacidade auditiva e estimulando a sensibilidade e a percepção. Para isso, é necessário que se saiba a diferença entre ouvir e escutar.
Quando a música é utilizada como pano de fundo para outras atividades — seja em uma festa, durante um bate-papo, no carro, lendo um livro, escrevendo ou faxinando a casa —, os nossos ouvidos captam-na de maneira distraída. Ouvimos, curtimos, mas não apreciamos. Já, quando dedicamos um tempo exclusivo à audição musical, sem outras interferências, é que percebemos as sutilezas contidas em uma composição. Escutamos, compreendemos, e aí sim: apreciamos.
Para exemplificar o raciocínio de uma maneira bem simples, basta pensarmos na seguinte questão: É possível que alguém memorize a letra de uma canção enquanto conversa sobre futebol com um amigo? Evidentemente que não.
Para memorizar ou compreender qualquer coisa que seja, é necessário prestar atenção.
Não me recordo agora se li ou se ouvi, tampouco se as palavras eram exatamente estas, mas alguém — certa vez, muito acertadamente — disse ou escreveu: “se o ser humano fosse capaz de se concentrar por apenas 5 minutos em um único dedo, acabar-se-iam os problemas do mundo”.
Durante o processo de audição de uma música (falamos agora de uma audição cuidadosa), devemos focar nossa atenção primeiramente a distinguir cada elemento que abrange sua estrutura, e analisar posteriormente os desdobramentos de cada um dos elementos presentes; ritmo, melodia, harmonia, timbre.
Quando escutamos uma música, conseguimos realmente perceber e distinguir todos os detalhes e aspectos relacionados aos elementos presentes?
Os elementos sonoros são a matéria-prima que o músico/compositor utiliza para concretizar a sua obra. Falaremos separadamente de cada elemento, mas agora, para o leitor ter uma ideia — mesmo que superficial — veremos a grosso modo no que consiste cada um dos quatro elementos básicos que compreendem uma música.
O ritmo — Movimento organizado pelo qual flui uma canção. Sua métrica representa uma das partes essenciais em um contexto musical por ser através da divisão rítmica (matemática) que se estabelece toda a organização dos “ingredientes” sonoros dispostos e necessários para a criação musical.
A melodia — Uma sequência de notas sucessivas, organizadas em um contexto, tonalidade ou perspectiva sonora pessoal do compositor. A melodia é, inevitavelmente, o elemento mais expressivo em uma composição.
A harmonia — Um sistema lógico e matemático que, através do encadeamento organizado de acordes (notas simultâneas), busca o equilíbrio com os demais elementos. A harmonia é uma ciência suprema!
O timbre — também conhecido como “colorido tonal”, é o elemento que caracteriza um instrumento musical ou uma voz específica presentes em uma composição. Quando reconhecemos o som de um violão, por exemplo, é porque distinguimos o seu timbre dos demais instrumentos.
Como exercício, ouça uma música (de preferência uma boa música) em um aparelho de som convencional, enquanto varre o chão, lava a louça, prepara os filhos para ir à escola ou lê o jornal, e depois escute a mesma música com atenção exclusiva (de preferência em um bom fone de ouvido), e note a diferença. Perceba os elementos.
Para finalizar este artigo, peço licença ao leitor para expor aqui um pequeno conto que — apesar de direcionado às crianças — serve perfeitamente para exemplificar o assunto.
(Esta pequena história faz parte do meu curso de Educação Musical Infantil).
O menino que ouvia e o menino que escutava.
Há muito tempo, quando ainda nem se sabia ao certo se o mundo era mesmo redondo, dois garotinhos descobriram a diferença entre ouvir e escutar. Sim! Existe uma grande diferença, e logo vocês compreenderão.
O mais velho dos garotinhos, de nome Frederico, era chamado de Kiko, e além dos olhos espremidos, tinha as orelhas muito pequenas. Para zombar da sua cara, sempre lhe perguntavam: — Kiko! Cadê suas orelhas?
Frederico, que se irritava com qualquer coisa, ficava vermelho de tanta raiva e logo colocava todos para correr.
O garoto mais novo, de nome Natalício, também tinha os olhos espremidos, em contrapartida — diferente do irmão — tinha as orelhas enormes. Os seus conhecidos lhe chamavam de Natal, e para zombar da sua cara, sempre lhe perguntavam: — Ei, Natal! Veio voando?
Enquanto colocavam suas mãos sobre as orelhas e imitavam o bater das asas de um pássaro. Zombavam e gargalhavam. Mas Natalício era muito calmo, e nunca se irritava com as zombarias de seus amigos. Ele acreditava que, por ter orelhas tão grandes, era que conseguia ouvir sons que os seus amigos e o seu irmão não conseguiam ouvir.
Natal passava horas em silêncio, ouvindo e prestando atenção em todos os sons à sua volta.
Kiko, inquieto como era, não percebia os sons tão bem quanto o seu irmão… Sempre que Natal dizia: — Ouça, Kiko! Que som maravilhoso!
Kiko resmungava: — Não consigo ouvir nada!
Natal replicava, inconformado: — Você é surdo ou o quê?
E os dois viviam discutindo…
Kiko dizia que Natal ouvia coisas porque suas orelhas eram gigantes, e Natal dizia que Kiko não ouvia nada porque suas orelhas eram minúsculas. Até que um dia, um velho com a barba desgrenhada e cabelos ralos que morava ali por perto, ao ouvir os irmãos batendo boca, interferiu: — Garotos, vocês pensam mesmo que o problema é o tamanho de suas orelhas?
Os dois garotos se entreolharam, espantados.
— Prestem atenção! — Disse o velho — Você, menino das orelhas de elefante, ouve melhor, mas não por conta do tamanho de suas orelhas, e sim porque é um menino atento, concentrado. Já você, menino das orelhas de azeitona, não ouve direito porque é um desmiolado, vive bagunçando e nunca presta atenção em nada; está sempre nervosinho e irritado com tudo. Se você não prestar atenção nos sons que entram pela sua orelha, você não os escuta.
Os dois meninos ficaram com caras de bocó, sem entender nada. “Como assim? Se o som entra pela orelha, como é possível não o escutar?”.
O velho, ao notar as caras de bocó, explicou: — Quando a pessoa é distraída, inquieta e não se concentra, o som entra por um ouvido e sai pelo outro. Já, quando a pessoa presta atenção, ela usa a mente para compreender os sons captados pelo ouvido, ou seja, a pessoa escuta, o que difere de apenas ouvir.
Os dois arregalaram os olhos, espantados.
— Deitem-se no chão e fechem os olhos. — Ordenou o velho — Agora, esqueçam o tamanho de suas orelhas e procurem identificar cada som à sua volta, escutando com muita atenção…
Natal, que era quietinho, após alguns segundos de concentração já conseguia ouvir até a batida do seu próprio coração. Já o seu irmão, que sempre foi bagunceiro e desatento, e não conseguia ficar quieto nem por um segundo, só conseguiu ouvir os sons dos próprios movimentos, pois mesmo deitado ele se mexia, coçava o nariz, estalava a língua, bufava e não parava de chacoalhar mãos e pés de um lado para o outro.
No fim de alguns instantes, o velho perguntou: — O que vocês ouviram?
Para Natal, o exercício não foi nenhuma surpresa, pois sempre estava atento aos sons que lhe chegavam aos ouvidos. Mas para Kiko, que nunca ficava quieto, o experimento não provocou nenhum efeito. Foi quando o velho lhe explicou: — A capacidade de escutar está relacionada com a sua concentração. Por isso, é importante que você fique quietinho e faça silêncio, para poder, além de prestar atenção nas pessoas e nas situações que ocorrem à sua volta, ouvir os sons da Natureza, dos animais, assim como os sons que existem dentro de você.
Não se esqueçam de que para escutar bem, é preciso ficar quietinho, fazer silêncio e prestar muita atenção nos sons que entram pelas orelhas.
Vocês compreenderam a história, ou ela entrou por um ouvido e saiu pelo outro?
Um grande abraço a todos! Até a próxima!
Ricardo Altava
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